Enquadramento

A formação profissional proposta pelo Decreto-Lei nº26, de 21 de janeiro de 1989, no âmbito do sistema educativo não superior, é uma experiência sem precedentes e original, não só para Portugal mas também como para o resto da Europa. Neste sentido, conduzir uma revisão da literatura internacional e nacional sobre este tema é uma tarefa difícil, porque a primeira é praticamente inexistente (European Commission, EACEA, Eurydice, 2020, e Tchernoff, 2007) e a segunda, o contexto nacional, ainda carece de tempo e preocupação de investigação para a sua emergência. Isto é tanto mais verdade, tendo em conta a controvérsia e a resistência ideológica que a implementação deste tipo de educação e escolas tem gerado no campo das políticas educativas e entre os atores envolvidos.

Apesar das dificuldades acima mencionadas, existem, contudo, alguns documentos essenciais, no contexto da educação musical especializada, e da educação profissional que nos permitem enquadrar e moldar a nossa problemática. Estes são: documentos como legislação, teses de doutoramento, artigos, apresentações e relatórios produzidos por diferentes atores deste subsistema educativo português (Abrantes, 2014; Azevedo, 1991, 1994 e 1999; Barbosa, 2006; Feliciano, 2008, Fernandes, 2007; Fernandes, 2009; Oliveira, Rodrigues, Vasconcelos,1995; Orvalho, Alves, Azevedo, 2019; Martins, 2014; Silva, 2013; Vasconcelos, 2011; Vieira, 2006).

O Sistema de Ensino e Aprendizagem Profissional (SEAP) deu origem às Escolas Profissionais como espaços educativos alternativos ao sistema de ensino formal, ao nível secundário, com o objetivo, por um lado, de reforçar os mecanismos de proximidade e transição entre a escola e o mundo do emprego, local e regional, e, por outro lado, de proporcionar aos jovens, que não se identificam com o modelo tradicional do ensino secundário, um novo percurso educativo, possivelmente mais atrativo e valorizado, e que os tornará pessoal e socialmente realizados. O SEAP é, acima de tudo, um espaço de formação que tenta não ser contaminado nem pelo antigo modelo de escola técnica nem pelo modelo tradicional do liceu, ambos considerados, uma vez mais, como um estigma da educação profissional. É de salientar que a promoção da igualdade de acesso à educação musical especializada foi também um dos pressupostos essenciais da criação deste modelo, e de facto um dos pontos de estudo mais significativos deste projeto (Sloboda, 2018).

A criação deste tipo de educação resultou da agenda política do nono governo constitucional, preocupado, por um lado, com a necessidade essencial de modernizar a educação como elemento-chave para responder ao desafio da integração europeia e do desenvolvimento económico e social do país e, por outro lado, com a promoção da igualdade de oportunidades e de direitos em termos de escolaridade para a população mais desfavorecida.

Quanto à educação musical artística especializada – um subsistema de ensino público e privado periférico ao sistema de ensino secundário – esta era de natureza não obrigatória, que, de acordo com o discurso dominante, era dirigida a indivíduos com competências específicas, dom ou talentos musicais (Werner, 2007).

Tal verdade só começa a ser contrariada após a promulgação do Decreto-Lei nº 310, de 1 de julho de 1983, que promoveu mudanças organizacionais e curriculares relevantes para a democratização da educação artística. Seguiu-se-lhe a legislação subsequente, nomeadamente o Decreto-Lei nº 344, de 2 de novembro de 1990, que estabelece as bases gerais da organização do ensino artístico, e a apropriação e incorporação do dispositivo legal para estabelecer o Sistema Profissional de Ensino da Música (SPrEM).

Em 1989, foram criadas as duas primeiras escolas do Ensino Profissional de Música (SPrM) do país, a EPrM do Vale do Ave e a EPrM de Espinho. No ano seguinte (1990), surge a Escola Profissional de Arte de Mirandela (ESPROARTE) e em 1992, a Escola Profissional e Artística do Alto Minho, em Viana do Castelo (ARTEAM) juntamente com a Escola Profissional de Artes da Beira Interior, na Covilhã (EPABI). Cinco anos após a homologação do ensino profissional de música, já se contava com 10 escolas profissionais de música dispersas por todo o país (Vasconcelos, 1995). As instituições de ensino musical, provenientes da rede de ensino privado e cooperativo, receberam o apoio financeiro do Estado Português e da Comunidade Europeia para manterem a sua sobrevivência.

As realizações e os resultados apresentados por estas escolas profissionais de música revelaram rapidamente que algo novo e diferente estava a acontecer, o que poderia mudar o panorama elitista e deficiente da educação musical em Portugal.

Segundo a opinião do director do antigo Gabinete de Educação Tecnológica, Artística e Profissional, a novidade e diferença que estas escolas profissionais apresentam, quando comparadas com os conservatórios de música, reside no modelo organizacional, pedagógico e sociocultural proposto.

Um modelo organizacional que proporcionou às escolas autonomia pedagógica, administrativa e financeira, e a liberdade de contratar os seus professores e instrutores (não permitido nos conservatórios de música). Um modelo pedagógico que combina uma sólida componente sociocultural com a formação científica, técnica e artística (os conservatórios musicais têm apenas a componente artística); que escolhe um sistema de aprendizagem modular e coletivo, capaz de sustentar a personalização e o sucesso do processo de aprendizagem (os conservatórios musicais enfatizam as unidades de ano escolar e a individualização da aprendizagem); e que favorece a convergência de vários tipos de conhecimentos, reduzindo a dispersão disciplinar e integrando a aprendizagem mais prática numa abordagem cultural e de reforço do significado. Um modelo sociocultural que adota o modelo de uma escola mais pequena (quando comparado com os conservatórios de música), em tamanho e número dos seus atores, com uma forte dimensão humana personalizada, geográfica e socialmente descentralizada e desenvolvida pela iniciativa das instituições sociais.

A assunção deste modelo organizacional, pedagógico e sociocultural determinou o nosso principal domínio científico: a sociologia das organizações (Knudsen & Tsoukas, 2005) com incursões complementares no campo da sociologia da educação e da cultura. Optámos por um modelo cultural (Bush, 2020), preocupado com os artefactos, valores básicos e pressupostos (Schein, 2010), para compreender uma realidade organizacional fortemente enraizada na subjetividade e intencionalidade dos atores envolvidos, no ambiente social em que opera e no poder político que o formalizou.

© Jorge Alexandre Costa & Graça Mota, 2022